Selvagens e civilizados
Cristina Fam
Esses povos guerreiam os que se encontram além das montanhas, na terra firme. Fazem-no inteiramente nus, tendo como armas apenas seus arcos e suas espadas de madeira, pontiagudas como as nossas lanças. E é admirável a resolução com que agem nesses combates que sempre terminam com efusão de sangue e mortes, pois ignoram a fuga e o medo. Como troféu, traz cada qual a cabeça do inimigo trucidado, a qual penduram à entrada de suas residências. Quanto aos prisioneiros, guardam-nos durante algum tempo, tratando-os bem e fornecendo-lhes tudo de que precisam até o dia em que resolvem acabar com eles. Aquele a quem pertence o prisioneiro convoca todos os seus amigos. No momento propicio, amarra a um dos braços da vitima uma corda cuja outra extremidade ele segura nas mãos, o mesmo fazendo com o outro braço que fica entregue a seu melhor amigo, de modo a manter o condenado afastado de alguns passos e incapaz de reação. Isso feito, ambos o moem de bordoadas às vistas da assistência, assando-o em seguida, comendo-o e presenteando os amigos ausentes com pedaços da vitima. Não o fazem entretanto para se alimentarem, como o faziam os antigos citas, mas sim em sinal de vingança, e a prova está em que tendo visto os portugueses, aliados de seus inimigos, empregarem para com eles, quando os aprisionavam, outro gênero de morte, que consistia em enterrá-los até a cintura, crivando de flechas a parte fora da terra e enforcando-os depois, imaginaram que essa gente da mesma origem daqueles seus vizinhos que haviam espalhado o conhecimento de tantos vícios, que essa gente, muito superior a eles no mal, não devia ter escolhido sem razão um tal processo de vingança, o qual por isso adotaram, porque o acreditavam mais cruel, e abandonaram seu sistema tradicional.
Não se parece excessivo julgar bárbaros tais atos de crueldade, mas que o fato de condenar tais defeitos não nos leve à cegueira acerca dos nossos. Estimo que é mais bárbaro comer um homem vivo do que comer depois de morto; e é pior esquartejar um homem entre suplícios e tormentos e o queimar aos poucos, ou enterrá-lo a cães e porcos, a pretexto de devoção e fé, como não somente o lemos mas vimos ocorrer entre vizinhos nossos conterrâneos: e isso em verdade é bem mais grave do que assar e comer um homem previamente executado.
Fonte: (Michel de Montaigne, Ensaios)
Do livro: HISTÓRIA Moderna e Contemporânea
Carlos Guilherme Mota.
Editora Moderna