14/11/2009

ELE e ELA
Espedito Lima
Ele é o patriarca que por ver sua família desordenada, fica surdo, lhe falta a visão e transforma-se num cego por causa das trevas que se levantam à sua frente
Ela é a matriarca que não domina as servas de sua casa nem ouve a música que lhe havia sido dirigida pelo compositor que a amou

Ele é um chefe sem honra e sem glória, que almejou a liderança e o poder de ter consigo todos quantos lhe admiram, mas o trata como se fosse um guerreiro derrotado
Ela é a vingança que fulmina a existência do seu viver e sacrifica a verdade que deveria tê-la em mente e lançá-la sobre a esperança do seu futuro

Ele é o manto que encobre o vazio de sua solidão, causada por muitos dos que lhe têm como um anfitrião que busca num banquete a honra que não lhe é atribuída
Ela é o fracasso que assusta a todos, pelo descaso daqueles que lhe provoca os tormentos da dor e da amargura, em suas noites de angústia

Ele é o púlpito que recebe a oratória dos arrogantes e executa o hino da crueldade que abomina seu comportamento ludíbrio perante aqueles que lhe ouvem
Ela é uma musa, sem brio e sem brilho, mas quer aparecer por qualquer preço e se mostrar como uma donzela que arrisca um galanteio na escuridão

Ele é um maestro que ao ver sua orquestra desafinada tenta corrigir as notas, porém aqueles que o seguem por suas gesticulações, dançam a valsa do seu esquecimento
Ela é uma viúva que perambula pelas ruas, gritando o nome do seu saudoso e chora a lembrança amarga de tê-lo por algum tempo como seu desafeto proposital

Ele é o coronel que jogou sua patente sobre sua própria sorte e viu desabar sobre si, as impurezas emanadas por atos de muitos que lhe cobiçam, mas que o rejeitam por já ser um caduco precoce
Ela é uma rainha sem coroa, cujo trono que a detém, antes de ser erigido, estava literalmente destruído, com suas ruínas esfumaçando e que intoxicara seus pulmões

Ele é o sono provocado pelo pesadelo que causou o pânico evaporado pelo sigilo daqueles que espreitam sua sorte e lhe jorram sobre o tapete do lamaçal, que suja tudo e todos, como uma latina que absorve dejetos fecais
Ela é o papel que limpa toda essa sujeira, vomita o líquido do prazer que a submete aos ímpetos bestiais e lisonjeia o hábito de uma mulher que é consumida por sua vaidade

Ele é o varão que está no buraco que lhe cavaram, na muralha que lhe cercaram, na margem da perdição e no conflito que lhe violenta, concedendo-lhe o título de antro sutil
Ela é a varoa que alucina o seu cansaço, suspira sua avareza, prateia o seu falar, sufoca sua verdade e adormece no corpo do seu sofrer

Ele é o Adão sem paraíso, o alimento que não sustenta, a palavra que não é ouvida, a mansidão que é brutal e o grito sanguinário que lhe banha
Ela é a Eva sem a costela, o raso que não tem vento, o areal que sopra a madrugada, o vestido que é rasgado pela manhã e a fome que lhe chega à tarde

Ele e Ela formam um casal de idosos deformados que o tempo trouxe, que a razão os destitui do pensar, lhes fizeram de anjos do mal, castraram a existência de suas vidas e destruiram os bens que lhes pertence, a memória sem história, um poço seco, um lugar desabitado e devastado para sempre; sobrando apenas a tragédia que lhes causaram, aqueles que lhes mandaram e lhes mandam.